A seletividade alimentar é uma das características mais comuns e desafiadoras enfrentadas por pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Estudos recentes indicam que entre 40% e 89% das crianças autistas apresentam algum grau de seletividade alimentar, em comparação com apenas 4,8% das crianças com desenvolvimento típico. Este comportamento vai muito além da simples preferência alimentar, refletindo alterações profundas no processamento sensorial e neurológico cerebral.autismspectrumnews+1
O Que É Seletividade Alimentar no Autismo
A seletividade alimentar no autismo caracteriza-se pela preferência restrita por determinados alimentos e recusa persistente em experimentar novos itens alimentares. As pessoas autistas frequentemente limitam suas escolhas alimentares baseando-se não apenas no sabor, mas principalmente em características sensoriais como textura, cor, cheiro, temperatura e aparência visual dos alimentos.rsdjournal+3
Esta restrição alimentar pode manifestar-se de várias formas: crianças que comem apenas alimentos de determinada cor, aquelas que aceitam somente texturas específicas (como alimentos crocantes ou macios), ou ainda aquelas que consomem exclusivamente produtos de marcas específicas devido à necessidade de previsibilidade. Em alguns casos, grupos alimentares inteiros são excluídos da dieta, comprometendo a ingestão adequada de nutrientes essenciais.genialcare+3
Como Funciona no Cérebro das Pessoas Atípicas
O funcionamento cerebral das pessoas autistas apresenta diferenças neurológicas que explicam a seletividade alimentar. Essas diferenças envolvem múltiplas regiões e sistemas cerebrais que trabalham de forma atípica.
Alterações no Tálamo e Processamento Sensorial
O tálamo funciona como o “filtro” ou “porteiro” das informações sensoriais que chegam ao cérebro. Em pessoas autistas, o tálamo processa os estímulos sensoriais de forma diferenciada, resultando em hiperreatividade ou hiporreatividade sensorial. Estudos de neuroimagem demonstram hiperconectividade entre o tálamo e áreas corticais como o córtex somatossensorial e motor em indivíduos autistas.drauziovarella.uol+4
Esta alteração no processamento talâmico faz com que estímulos sensoriais relacionados aos alimentos sejam percebidos com intensidade muito maior (hipersensibilidade) ou muito menor (hipossensibilidade) do que em pessoas neurotípicas. Consequentemente, texturas que para a maioria das pessoas são agradáveis podem ser percebidas como desconfortáveis ou até dolorosas por pessoas autistas.pmc.ncbi.nlm.nih+3
O Papel do Córtex Insular na Percepção Gustativa
O córtex insular, especialmente a ínsula, é a região cerebral responsável pelo processamento das sensações gustativas, olfativas e pela interocepção (consciência dos sinais corporais internos como fome e saciedade). Estudos com ressonância magnética funcional revelam que pessoas autistas apresentam padrões atípicos de ativação na ínsula quando expostas a estímulos alimentares.pmc.ncbi.nlm.nih+4
Pesquisas identificam uma associação positiva entre a reatividade gustativa autorrelatada e a resposta cerebral a estímulos doces na ínsula de indivíduos autistas. Ou seja, quanto maior a sensibilidade gustativa reportada, maior a ativação cerebral nesta região, o que pode predispor a padrões seletivos e inflexíveis de alimentação. Além disso, a conectividade funcional atípica entre a ínsula e outras regiões cerebrais, como o sulco temporal superior, pode contribuir para os comportamentos alimentares desadaptativos.pmc.ncbi.nlm.nih+1
Dificuldades de Interocepção
Até 70% das pessoas autistas apresentam dificuldades na interocepção, a capacidade de reconhecer sinais internos do corpo como fome, sede, saciedade ou náusea. Esta dificuldade está relacionada à conectividade atípica da ínsula. Quando não conseguem identificar adequadamente a fome ou a saciedade, as pessoas autistas podem desenvolver padrões alimentares irregulares, contribuindo para a seletividade como forma de estabelecer rotinas e estrutura alimentar.pmc.ncbi.nlm.nih+4
Amígdala e Respostas Emocionais aos Alimentos
A amígdala, estrutura cerebral relacionada ao processamento emocional e detecção de ameaças, também está envolvida na seletividade alimentar. Em pessoas autistas, a amígdala pode apresentar volumes aumentados e ativação atípica. Esta alteração contribui para respostas de ansiedade e hipervigilância diante de alimentos não familiares.pmc.ncbi.nlm.nih+1
Estudos demonstram que a amígdala está envolvida no processamento hedônico (prazer) relacionado aos alimentos. Quando a amígdala responde de forma exagerada ou atípica, alimentos novos podem ser interpretados como potencialmente ameaçadores, desencadeando reações de recusa ou aversão. A conexão entre a amígdala e o pulvinar (região do tálamo) mostra-se correlacionada com a gravidade dos sintomas de hiperresponsividade sensorial em autistas.pubmed.ncbi.nlm.nih+3
Córtex Pré-Frontal e Rigidez Cognitiva
O córtex pré-frontal, responsável por funções executivas, controle de impulsos e flexibilidade cognitiva, pode apresentar conectividade reduzida em pessoas autistas. Esta alteração explica a inflexibilidade mental e a dificuldade em aceitar mudanças na rotina alimentar.institutosingular+4
A rigidez cognitiva manifesta-se na necessidade de manter padrões alimentares previsíveis: mesmos alimentos, mesmas marcas, mesmos utensílios, mesmos horários e locais de refeição. Qualquer alteração nestes padrões pode causar desconforto significativo e recusa alimentar. Esta rigidez não é uma “birra” ou capricho, mas sim uma manifestação neurológica da necessidade de previsibilidade característica do autismo.cambridge+4
Sistema de Recompensa e Dopamina
O sistema dopaminérgico, envolvido na motivação e recompensa, também apresenta alterações em pessoas autistas. A dopamina é um neurotransmissor fundamental para o processamento da recompensa associada aos alimentos. Estudos indicam que há desregulação dopaminérgica em formas sindrômicas de autismo, embora não haja um padrão consistente – alguns modelos mostram aumento da função dopaminérgica, enquanto outros apresentam deficiência na sinalização dopaminérgica.frontiersin+1
Esta desregulação pode afetar como os alimentos são percebidos como recompensadores ou prazerosos, contribuindo para preferências alimentares muito específicas e dificuldade em encontrar motivação para experimentar novos alimentos. O núcleo accumbens (parte do estriado ventral), região central do sistema de recompensa, também está envolvido no controle da busca por alimentos e na antecipação de recompensas alimentares.danieldashnawcouplestherapy+2
Integração Sensorial e Multissensorialidade
O ato de comer é uma experiência profundamente sensorial que envolve simultaneamente múltiplos sistemas: gustativo (paladar), olfativo (olfato), tátil (textura na boca), visual (aparência do alimento), auditivo (sons durante a mastigação), proprioceptivo (esforço de mastigação) e vestibular (posição durante a refeição).pepsic.bvsalud+2
Para pessoas autistas, a integração dessas informações sensoriais pode ser deficitária. Cerca de 95% das crianças autistas demonstram algum grau de disfunção no processamento sensorial. Quando múltiplos estímulos sensoriais chegam simultaneamente ao cérebro de forma desorganizada ou amplificada, o resultado pode ser uma sobrecarga sensorial que torna a experiência alimentar estressante e aversiva.globo+4
Estudos específicos sobre sensibilidade sensorial e seletividade alimentar identificam que as texturas alimentares são o principal motivo para recusa alimentar. Texturas cremosas e macias (como purê de batatas), alimentos que requerem mastigação (como carnes não processadas) e alimentos com pedaços ou grumos (como aveia) são frequentemente problemáticos. A sensibilidade tátil, gustativa e olfativa apresenta correlações estatisticamente significativas com a seletividade alimentar.pmc.ncbi.nlm.nih+2
Consequências Nutricionais e de Saúde
A seletividade alimentar não é apenas uma questão comportamental, mas também tem implicações nutricionais significativas. Estudos revelam que 70,4% das crianças autistas apresentam repertório alimentar limitado (menos de 20 alimentos diferentes). Esta restrição frequentemente resulta em consumo inadequado de nutrientes essenciais, com deficiências em fibras, cálcio, vitamina D e outros micronutrientes.braspenjournal+2
Pesquisas mostram que 48,8% dos alimentos consumidos por crianças autistas são ultraprocessados, enquanto apenas 39% são alimentos in natura ou minimamente processados. Paradoxalmente, apesar da seletividade alimentar, estudos indicam altas taxas de sobrepeso e obesidade nesta população, possivelmente relacionadas à preferência por alimentos ricos em carboidratos e processados.periodicos.newsciencepubl+2
Estratégias de Intervenção
O manejo da seletividade alimentar no autismo requer abordagem multidisciplinar envolvendo nutricionistas, terapeutas ocupacionais, psicólogos e fonoaudiólogos. As estratégias mais eficazes incluem:rsdjournal+2
Terapia de Integração Sensorial: Intervenções baseadas na integração sensorial mostram-se eficazes para reduzir a seletividade alimentar. O trabalho inicia com a modulação sensorial antes de abordar diretamente a alimentação, respeitando o perfil sensorial individual de cada pessoa.pmc.ncbi.nlm.nih+2
Intervenções Comportamentais: Técnicas baseadas na Análise Aplicada do Comportamento (ABA) são amplamente utilizadas. Estas incluem exposição gradual a novos alimentos, reforço positivo, apresentação simultânea de alimentos aceitos com não aceitos, modelagem por vídeo e por pares, e oferta de escolhas para a criança.repositorio.pucgoias+1
Estratégias Nutricionais: A introdução gradual de novos alimentos seguindo uma progressão de níveis é recomendada. Por exemplo, iniciar mantendo a forma de preparo de um alimento aceito enquanto varia ligeiramente a textura, depois manter o sabor enquanto varia a textura, e finalmente variar tanto sabor quanto textura.academiadoautismo+1
Modificações Físicas dos Alimentos: Transformações na apresentação física de alimentos (como transformar vegetais em snacks crocantes) podem melhorar a aceitação ao alterar aspectos sensoriais problemáticos mantendo o valor nutricional.pmc.ncbi.nlm.nih
Orientação Parental: O envolvimento e treinamento dos pais é fundamental para o sucesso das intervenções. A consistência entre o ambiente terapêutico e o domiciliar é essencial para a generalização dos ganhos.rsdjournal+2
Ambiente Alimentar Adequado: Criar ambientes de refeição tranquilos, sem distrações (como telas), com rotinas previsíveis e respeitando o tempo da criança são aspectos importantes.pmc.ncbi.nlm.nih+2
Considerações Finais
A seletividade alimentar no autismo não é um simples comportamento de “manha” ou “frescura”, mas sim uma manifestação complexa de diferenças neurológicas no processamento sensorial, integração de informações, regulação emocional e flexibilidade cognitiva. Compreender os mecanismos cerebrais subjacentes é fundamental para desenvolver intervenções mais eficazes e empáticas.drauziovarella.uol+2
As pesquisas neurocientíficas mais recentes reforçam que cada pessoa autista apresenta um perfil sensorial único, podendo manifestar hipersensibilidade em alguns sistemas sensoriais e hipossensibilidade em outros. Portanto, as intervenções devem ser individualizadas, respeitando as particularidades sensoriais, comportamentais e nutricionais de cada indivíduo.pmc.ncbi.nlm.nih+4
A neuroplasticidade cerebral oferece esperança de que, com intervenções adequadas e precoces, é possível expandir gradualmente o repertório alimentar e melhorar a qualidade de vida das pessoas autistas e suas famílias. O sucesso depende de abordagens multidisciplinares, paciência, respeito ao ritmo individual e compreensão profunda das bases neurológicas que fundamentam este comportamento.
REFERÊNCIAS
- https://autismspectrumnews.org/beyond-picky-eating-supporting-lifelong-health-in-autistic-children/
- https://portal.pucrs.br/en/news/health/food-selectivity-and-autism-understand-the-relationship/
- https://rsdjournal.org/rsd/article/view/48108
- https://drauziovarella.uol.com.br/pediatria/como-tratar-a-seletividade-alimentar-em-criancas-autistas/
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC8323334/
- https://genialcare.com.br/blog/seletividade-alimentar-no-autismo/
- https://braspenjournal.org/article/doi/10.37111/braspenj.2022.37.1.12
- https://blog.autismoemdia.com.br/blog/seletividade-alimentar-autismo/
- https://periodicos.newsciencepubl.com/editoraimpacto/article/view/8013
- https://www.frontiersin.org/journals/neuroscience/articles/10.3389/fnins.2023.1279909/full
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC10687592/
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC10755010/
- https://www.thetransmitter.org/spectrum/brains-sensory-switchboard-has-complex-connections-to-autism/
- https://g1.globo.com/pr/parana/especial-publicitario/soulmare-clinica-de-autismo/noticia/2024/10/14/seletividade-alimentar-no-autismo.ghtml
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC3086654/
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC4303499/
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC6051474/
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC3436657/
- https://neurodivergentinsights.com/autism-interoception/
- https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30035000/
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC9543236/