A sensibilidade auditiva representa uma das características sensoriais mais prevalentes e impactantes no Transtorno do Espectro Autista (TEA), afetando entre 50% e 90% das pessoas autistas. Esta característica manifesta-se principalmente como hipersensibilidade auditiva (ou hiperacusia), uma condição na qual sons cotidianos são percebidos como excessivamente intensos, desconfortáveis ou até dolorosos. Compreender como essa sensibilidade funciona no cérebro atípico é fundamental para desenvolver estratégias de apoio mais eficazes.pmc.ncbi.nlm.nih+5
Manifestações da Sensibilidade Auditiva no Autismo
A sensibilidade auditiva no autismo apresenta-se de diversas formas. Estudos brasileiros indicam que aproximadamente 63% das pessoas com autismo apresentam desconforto com sons acima de 80 decibéis, sendo que esse desconforto pode diminuir com a idade. Sons que a maioria das pessoas considera normais—como o zumbido de lâmpadas fluorescentes, cortadores de grama distantes, ou até mesmo a “energia” dos aparelhos eletrônicos—podem ser claramente audíveis e perturbadores para pessoas autistas.scielo+2
Paradoxalmente, enquanto alguns indivíduos apresentam hipersensibilidade, outros podem demonstrar hiposensibilidade, caracterizada por respostas reduzidas aos estímulos auditivos, como não reagir quando chamados pelo nome. Esta variabilidade reflete a heterogeneidade do processamento sensorial no TEA.biologyinsights+2
Além da hiperacusia, outras manifestações incluem misofonia (aversão a sons específicos) e fonofobia (medo de sons). Muitas pessoas autistas também apresentam capacidades excepcionais de discriminação de frequências e maior prevalência de ouvido absoluto—a habilidade de identificar ou produzir a frequência de um som sem referência—presente em 5% a 11% das pessoas autistas, comparado a menos de 0,01% na população geral.investigarmqr+4
Mecanismos Neurobiológicos no Cérebro Autista
Alterações no Tronco Cerebral e Vias Auditivas Subcorticais
As pesquisas revelam que as diferenças no processamento auditivo começam nas estruturas mais básicas do sistema auditivo. Estudos anatomopatológicos identificaram anormalidades significativas no complexo olivar superior (SOC), um conjunto de núcleos no tronco cerebral onde as informações auditivas de ambos os ouvidos convergem pela primeira vez. Pessoas autistas apresentam neurônios significativamente menores e mais arredondados no SOC, além de redução no número total de neurônios nessa região.pmc.ncbi.nlm.nih+3
O colículo inferior (IC), estrutura-chave do mesencéfalo auditivo, também apresenta funcionamento atípico no autismo. Estudos com ressonância magnética funcional demonstraram que o colículo inferior direito responde menos a estímulos de voz e sons vocais em pessoas autistas comparadas a controles neurotípicos. Modelos animais de autismo mostram hiperresponsividade e curvas de sintonia de frequência mais amplas no colículo inferior, evidenciando processamento auditivo anormal desde estágios precoces do desenvolvimento.journals.physiology+2
O Modelo de Ganho Central
Uma das teorias mais importantes para explicar a hiperacusia no autismo é o modelo de ganho central. Este modelo propõe que anormalidades estruturais no tronco cerebral auditivo durante o desenvolvimento inicial levam a adaptações compensatórias no colículo inferior e no córtex auditivo, resultando em um aumento geral do ganho auditivo central.pmc.ncbi.nlm.nih+2
Em termos práticos, o cérebro autista pode “amplificar” os sinais auditivos de forma excessiva. Como a percepção subjetiva de volume está representada no córtex auditivo, esse aumento de ganho pode explicar porque sons de intensidade moderada são percebidos como muito altos. Estudos com neuroimagem confirmam que pessoas com hiperacusia apresentam atividade neural aumentada no mesencéfalo auditivo, tálamo e córtex auditivo primário em resposta a sons.pmc.ncbi.nlm.nih+1
Córtex Auditivo e Processamento Temporal
O córtex auditivo, localizado no lobo temporal, também apresenta diferenças estruturais e funcionais no autismo. Estudos com magnetoencefalografia (MEG) demonstraram respostas auditivas atrasadas no giro temporal superior, processamento pré e pós-estímulo atípico, e lateralização hemisférica anormal. Crianças autistas apresentam processamento cortical auditivo caracterizado por processamento mais lento ou prejudicado, particularmente em resposta a sons de fala.bpb-us-e1.wpmucdn+3
A conectividade funcional do córtex auditivo primário também está reduzida no autismo. Estudos identificaram menor conectividade entre o córtex auditivo e quatro regiões críticas: córtex occipital medial, córtex motor primário, córtex insular e área de Wernicke. Esta conectividade reduzida pode explicar parcialmente as dificuldades de integração sensorial associadas ao autismo.pubmed.ncbi.nlm.nih
Um achado importante é a redução da adaptação cortical auditiva em pessoas autistas. Enquanto cérebros neurotípicos reduzem a resposta neural a estímulos repetidos (habituação), o cérebro autista mantém respostas elevadas mesmo após exposições repetidas. Esta falta de habituação pode contribuir para a sobrecarga sensorial contínua.elifesciences
Desequilíbrio Neuroquímico: GABA e Glutamato
O processamento auditivo atípico no autismo está intimamente relacionado a disfunções no sistema GABAérgico. O GABA (ácido gama-aminobutírico) é o principal neurotransmissor inibitório do cérebro, essencial para equilibrar a excitação e inibição neural.advancedautism+2
Estudos demonstram que a sensibilidade auditiva excessiva em pessoas autistas correlaciona-se negativamente com os níveis de GABA talâmico e positivamente com glutamato (neurotransmissor excitatório) no córtex somatossensorial. No autismo, há evidências de níveis reduzidos de GABA em múltiplas regiões cerebrais, incluindo o cerebelo, córtex pré-frontal e hipocampo. Este desequilíbrio entre excitação e inibição pode resultar em hiperexcitabilidade neural, levando a respostas exageradas aos estímulos auditivos.pmc.ncbi.nlm.nih+3
Pesquisas com ressonância magnética espectroscópica mostraram que, embora não haja diferenças diagnósticas consistentes nas concentrações de neurotransmissores, dentro do grupo autista, a severidade da sensibilidade sensorial correlaciona-se com níveis reduzidos de GABA talâmico.pmc.ncbi.nlm.nih
Interneurônios Parvalbumina-Positivos
Um subtipo específico de neurônios inibitórios—os interneurônios parvalbumina-positivos (PV+)—apresenta redução significativa no córtex pré-frontal de pessoas autistas. Estes interneurônios de disparo rápido são responsáveis por sincronizar a atividade de neurônios piramidais e contribuir para oscilações gama no córtex.academic.oup+3
A disfunção desses interneurônios pode afetar diretamente o processamento auditivo. Estudos demonstram que a atividade dos interneurônios PV+ está relacionada à maneira como os sons são processados, e sua redução pode resultar em sensibilidade aumentada a estímulos sonoros. Esta descoberta é particularmente relevante porque os interneurônios PV+ são vulneráveis ao estresse metabólico devido às suas altas taxas de disparo.pmc.ncbi.nlm.nih+3
Sistema Límbico e Respostas Emocionais
A hipersensibilidade auditiva no autismo não se limita ao processamento sensorial básico, envolvendo também o sistema límbico, responsável pelas respostas emocionais. Estudos sugerem que o sistema límbico gera reações emocionais negativas aos sons e as transmite ao córtex auditivo, desencadeando a percepção negativa que caracteriza a hiperacusia.hyperacusisresearch+1
A amígdala, estrutura-chave do sistema límbico para detecção de ameaças emocionais, demonstra padrões atípicos de ativação no autismo. Enquanto em cérebros neurotípicos a amígdala habitua-se (reduz sua resposta) a estímulos repetidos, em pessoas autistas ela permanece altamente ativada mesmo após múltiplas exposições. Esta ativação sustentada pode explicar por que as emoções e reações a sons podem sentir-se tão intensas e persistentes.simplypsychology
As respostas defensivas comuns no autismo—como evitar ambientes ruidosos, cobrir os ouvidos exageradamente—refletem uma resposta emocional aos sons via estimulação do sistema límbico e do sistema nervoso autônomo.hyperacusisresearch
Funções Executivas e Córtex Pré-frontal
O córtex pré-frontal, região cerebral responsável pelas funções executivas, desempenha papel crucial na regulação do processamento sensorial auditivo. Funções executivas incluem memória de trabalho, controle inibitório e flexibilidade cognitiva—todas essenciais para filtrar informações auditivas irrelevantes e focar em sons importantes.thetransmitter+3
Anormalidades no funcionamento do córtex pré-frontal no autismo podem contribuir para a filtragem auditiva deficiente. Em condições normais, o córtex pré-frontal envia mensagens neurais para outras partes do cérebro para gerenciar o processamento de informações, incluindo o que ouvimos. Quando esse sistema regulatório funciona de forma atípica, pode resultar em “portões sensoriais” (sensory gating) inadequados, permitindo que todos os sons—relevantes ou não—sejam processados com igual intensidade.onlinelibrary.wiley+1
Estudos de neuroimagem funcional demonstram que pessoas autistas apresentam conectividade reduzida entre o córtex pré-frontal e outras regiões cerebrais, incluindo áreas auditivas. Esta conectividade reduzida, particularmente na banda beta (14-25 Hz), está associada a dificuldades no processamento de fala em ambientes ruidosos.onlinelibrary.wiley
Células Ciliadas Externas e Processamento Periférico
Embora a maioria das diferenças no processamento auditivo autista ocorra no sistema nervoso central, há evidências de alterações também no sistema auditivo periférico. Estudos com emissões otoacústicas—sons gerados pelas células ciliadas externas da cóclea—demonstraram função reduzida das células ciliadas externas em crianças autistas, especificamente na região de frequência de 1 kHz, crítica para o processamento de fala.pmc.ncbi.nlm.nih+1
As células ciliadas externas servem uma função de “afinação” (tuning), amplificando sons de baixa intensidade e melhorando a discriminação de frequências. Sua disfunção pode resultar em capacidade reduzida de discriminar entre dois sons cuja frequência difere minimamente. Curiosamente, alguns estudos mostraram que a amplitude reduzida das emissões otoacústicas correlaciona-se com maior severidade do autismo.pubmed.ncbi.nlm.nih+3
Sincronização Bilateral Atípica
O processamento auditivo eficiente requer coordenação entre os hemisférios cerebrais esquerdo e direito. Pesquisas com magnetoencefalografia revelaram sincronização bilateral anormal em crianças autistas durante o processamento de voz humana. Especificamente, crianças autistas apresentaram maior complexidade Omega (indicando menor sincronização) na janela temporal de 0-50 ms após o estímulo auditivo, sugerindo menor sincronização inter-hemisférica nos estágios iniciais do processamento auditivo.journals.plos
Esta dessincronização pode contribuir para dificuldades no processamento auditivo complexo, particularmente em tarefas que requerem integração de informações de ambos os hemisférios.
Processamento Temporal e Discriminação de Frequências
As habilidades de processamento temporal auditivo (capacidade de processar mudanças rápidas nos sons ao longo do tempo) apresentam-se frequentemente prejudicadas no autismo. Adolescentes autistas demonstram discriminação de frequência prejudicada e evidências sugestivas de pior resolução temporal, questionando a noção de sensibilidade espectral superior universal no autismo.pubmed.ncbi.nlm.nih+1
Paradoxalmente, alguns estudos relatam capacidades excepcionais de discriminação de frequências em pessoas autistas, particularmente para tons puros isolados. Esta discrepância pode refletir a heterogeneidade do autismo, com diferentes perfis de processamento auditivo em diferentes subgrupos.pmc.ncbi.nlm.nih+2
Integração e Implicações Práticas
Compreender os mecanismos neurobiológicos da sensibilidade auditiva no autismo tem implicações importantes para intervenções. Embora terapias como Treinamento de Integração Auditiva (AIT) sejam populares, revisões sistemáticas indicam que não há evidências científicas suficientes de sua eficácia. O AIT envolve 10 horas de audição de música eletronicamente modificada, mas estudos controlados falharam em demonstrar benefícios consistentes.raisingchildren+2
Intervenções mais promissoras focam em estratégias de dessensibilização gradual baseadas em ABA, modificações ambientais (como redução de ruído de fundo e uso de protetores auditivos quando necessário), e desenvolvimento de habilidades de autorregulação. Terapias comportamentais que ensinam estratégias de enfrentamento e relaxamento demonstram eficácia em reduzir o sofrimento associado à sensibilidade auditiva.frontiersin+2
A pesquisa sobre modulação GABAérgica também sugere direções futuras. Estudos demonstraram que medicamentos que agem nos receptores GABA-B (como o arbaclofen) podem modular o processamento sensorial atípico no autismo, normalizando respostas neurais a estímulos auditivos e visuais.nature+1
Conclusão
A sensibilidade auditiva no autismo resulta de diferenças complexas e inter-relacionadas em múltiplos níveis do sistema nervoso, desde o tronco cerebral até o córtex cerebral. Alterações estruturais no complexo olivar superior e colículo inferior, ganho central aumentado, desequilíbrio GABAérgico, redução de interneurônios parvalbumina-positivos, conectividade cortical atípica, e envolvimento do sistema límbico convergem para criar um perfil de processamento auditivo fundamentalmente diferente.
Estas diferenças não representam simplesmente “defeitos” a serem corrigidos, mas refletem uma neurobiologia distinta que processa informações auditivas de maneira atípica. Esta compreensão neurobiológica fundamenta abordagens mais respeitosas e eficazes, que reconhecem a sensibilidade auditiva como uma resposta neurológica legítima que requer acomodações ambientais e estratégias de apoio personalizadas, em vez de tentativas simplistas de “normalização”.
REFERÊNCIAS
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